O IMPÉRIO DA CONFUSÃO

Uma breve meditação sobre a idolatria da conversação vazia como se fosse um elevado debate

Por Dartagnan da Silva Zanela

“Saber ouvir quase que é responder.”
(Pierre de Marivaux)

“Qual o caminho da gente? Nem para frente nem para trás: só para cima”.
(Guimarães Rosa)

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Boa parte das discussões travadas no Brasil atual não passam de verdadeiros desperdícios de energia humana que poderiam ser bem melhor aproveitadas em outras atividades que agregariam uma maior densidade humana aos indivíduos que se fiam de maneira tão irascível numa infinidade de bate-bocas vulgares que apenas reafirmam a sua tolice individual na idiotia coletivamente cultivada.

Não que as discussões, em si, sejam ruins. Por favor, não me entendam mal. O que é péssimo em nosso país, hoje, é a idolatria que se edificou em torno do ato de discutir simplesmente por discutir, como se o armar duma contenda fosse a forma mais eficaz para se conhecer e compreender alguma coisa.

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E não é apenas isso não. Na maior parte dos casos, a intenção que se faz presente em uma discussão, pouco importando qual seja a questão em debate, é muito mais a de afirmar o que se sente, ou pensa, a respeito disso ou daquilo, do que realmente compreender o que está sendo discutido com uma maior profundidade.

Resumindo: o que se procura mesmo, nessas fogueiras de vaidade, sejam colegiais, acadêmicas ou paroquiais, não é uma procura por algo que tenha um maior grau de probabilidade, mas sim, persuadir os outros que “sabemos” mais e, é claro, principalmente persuadir-nos dessa ilusão para melhor convencer os demais de que nossa fantasia é “real”.

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Isso pode até ser divertido e provavelmente fará nos sentirmos mais sabidos, porém, pouquíssimo tutano humano será acumulado em nossa alma simplesmente porque tudo o que fizermos num ambiente desse será simulação de interesse pelo assunto, pelo conhecer e nada mais. Num simulacro desse não há espaço para a procura sincera pelo conhecimento da verdade. Não adiante disfarçar.

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Outra coisa: ao chamar a atenção para esse problema, não estamos afirmando que não se deve discutir e que tais empreitadas seriam desnecessárias, não mesmo. O que intentamos, com essas turvas linhas, é enfatizar que o ato de discutir não tem toda a importância que é atribuída a ele e, principalmente, gostaríamos de enfatizar que o valor de uma discussão está fundamentalmente ligado a finalidade de sua realização, jamais a sua prática em si.

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Dito isso, vejamos como tal quadro encontra-se desenhado dentro do ambiente educacional brasileiro. Se formos rememorar ou, como dizem os infantes, puxar pra ideia, as inúmeras vezes que um professor promoveu uma discussão em sala de aula, teremos uma amostragem extremamente interessante para refletirmos sobre esse mau hábito brazuca.

Caso não queiramos relembrar cenas de nossa vida colegial, permitam-nos propor uma cena que nos transporte diretamente para esse mundinho a muito, ou a pouco vivido.

O educador chaga em sala de aula com seus livros de chamada e várias folhas de papel; fotocópias de um artigo, ou de uma matéria, de revista que versa sobre algum tema polêmico que, no vernáculo educacional, convencionou-se chamar de “desafios contemporâneos”; noutras épocas de “temas transversais”. Enfim, são temas espinhosos que geram amargos dissabores.

O educador entrega uma cópia para cada um dos presentes. Eles leem; uns com maior, outros com menor atenção e, é claro, há aqueles que o fazem sem o menor zelo.

Feito isso, iniciam-se os trabalhos onde uns se colocam a favor, outros contra o que era apresentado pela fotocópia. E o que é mais interessante é como e por que esses juízos são elaborados. Os mais zelosos o fazem tendo em vista a obtenção de uma boa nota, outros tantos simplesmente para reafirmar o que sentem e pensam a respeito do assunto e uns defendem isso ou aquilo por mera implicância com um colega, ou com o próprio professor e, por isso, adota essa ou aquela posição em relação ao tema e, por fim, há aqueles que simplesmente dizem alhos ou bugalhos pelo prazer de ver o circo pegar fogo.

Dum modo geral, todos alteram o tom de sua voz e a têmpera de seu espírito para defender o seu ponto de vista, independente dos motivos que os levem a fazer isso e, naturalmente, as diferenças se intensificam, a animosidade floresce e, ao final, um bom tanto sai do bate-boca colegial ofendido e magoado, outros sadicamente satisfeitos, mas todos saem do embate com a sensação de que agiram criticamente, mesmo que não tenham aprendido nada de realmente substancial a respeito do tema que foi o objeto da discussão.

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Vejam só: uma atividade como essa, montada nessas bases, não teria como gerar bons frutos porque, desde o princípio ela estava viciada. Isso mesmo, viciada.

Nas linhas acima apontamos para os elementos que possivelmente estariam motivando os sujeitos que estavam a debater, mas e quanto ao educador, qual era a intenção do distinto indivíduo ao promover algo desse gênero?

Bem, pode ser porque ele estivesse querendo impor o seu ponto de vista sobre o assunto, haja vista que a palavra do professor sempre é a palavra final num trem desse tipo, principalmente quando os ânimos são aquecidos. Ou seja: uma forma sutil e canalha de doutrinação e manipulação comportamental. Mas não apenas isso! O sujeito também pode muito bem promover esse tipo de prática em sala de aula por estar morrendo de preguiça de dar aula ou, simplesmente, se formos dar o benefício da dúvida, porque ele acredita piamente que essa seja uma forma refinada e moderna de promover a construção do que ele crê ser o tal do “pensamento crítico”, apesar de que, com tal prática, ele esteja apenas sedimentando mais e mais uma impressão sobre o assunto e não levando os alunos a ter uma mais profunda compreensão sobre ele.

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É claro que todos afirmam que o objetivo é conhecer melhor o assunto e que uma discussão serve para esse propósito. Afirma-se isso, mas não é o que, de fato, ocorre. Isso, na verdade, é uma confusão de termos porque uma discussão só pode gerar bons frutos quando antes se procura conhecer o assunto que será objeto de debate e, para conhecê-lo há uma só ferramenta: sentar e estudar o assunto, ler várias fontes de informação sobre o tema para, depois disso, e somente depois disso, formar um ponto de vista sobre o que foi estudado e atentamente meditado. Porém, infelizmente, não é isso o que ocorre nem aqui, muito menos acolá.

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Outra coisa: um debate pode ser sim montado em sala de aula com o intento de fomentar o desenvolvimento da capacidade argumentativa. Aliás, é algo muito importante para a formação de um indivíduo.

Sobre esse tipo de prática, há um exemplo que considero muito positivo. Um professor, certa feita, chegou em sala de aula e, de modo bem descontraído, como quem não quer nada, antes de começar a ministrar a sua aula, conversou com os alunos a respeito das “cotas raciais”.

Uns manifestaram-se, nesse bate-papo informal, contra e, outros tantos, a favor. Bem, antes de iniciar a sua aula, o professor marcou uma data para eles debaterem o dito assunto. Tomou o nome daqueles que eram a favor e dos que eram contrários e determinou o seguinte: os que eram a favor deveriam argumentar contra as “cotas”; os que eram contrários deveriam encontrar argumentos a favor.

Batata! Os alunos não poderiam fingir que conheciam o que desaprovavam. Aliás, deveriam conhecer muito bem para poder construir argumentos razoáveis. Resumindo: eles tiveram que estudar sem encontra-se absorvidos por suas paixões. Eles foram obrigados a conhecer o outro para melhor conhecerem-se e, no frigir dos ovos, aprenderam mais, muito mais sobre o tema e aumentaram significativamente a sua capacidade argumentativa que, diga-se de passagem, é uma competência importantíssima para a vida numa democracia.

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Mas, infelizmente, não é isso o que ocorre na maioria dos casos. Num quadro como esse, no da educação na sociedade brasileira atual, a única coisa que pode germinar, e dar frutos, é a confusão geral que acaba tomando a forma duma grande assembleia de inconscientes onde todos falam do que sentem e do que “pensam” a respeito disso ou daquilo, mas ninguém quer ouvir o que o outro tem a dizer, porque, de fato, na maioria dos casos, ninguém tem nada de relevante a dizer.

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Outro claro sinal desse império da confusão são as redes sociais. Não elas em si, mas sim, a forma como muitos a utilizam, como sendo um canal para debater temas. Não apenas isso. Podemos afirmar que o culto que se tem em torno da interatividade entre o produtor de informações e o seu público é algo que chega ser, no mínimo, esquisito.

Quando acessamos o Facebook, por exemplo, e vemos um post com uma sequência de cinco mil comentários temos diante de nossos olhos uma multidão de pessoas que querem ser ouvidas, mas que, não estão interessadas no que o outro está dizendo. Nem mesmo no que o autor do post comentado tem a dizer. Tudo é automático, mecânico e impensado, ao mesmo tempo em que se tem a ilusão pífia de que se está agindo de maneira autônoma, crítica e, ui, cidadã. O mesmo se pode afirmar dos espaços destinados aos leitores dum site para que eles comentarem uma matéria.

Resumindo: aquela mesmíssima impostura cultivada em sala de aula vê-se presente nas redes sociais que, por sua natureza, são canais formidáveis para disseminação de informações, de símbolos e, é claro, pra mobilizar um grande contingente de pessoas para realização de algo, porém, esse não é o canal, digo, não é o ambiente mais apropriado para o desenvolvimento de um debate que, literalmente, acaba apenas reproduzindo o comportamento vicioso apontado aqui nestas tristes linhas.

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Outra coisa que devemos deixar muitíssimo claro: uma coisa é um debate político que esteja sendo realizado entre agentes políticos; outra coisa, bem diferente, são os partidários, militantes e eleitores que apóiam a plataforma desses agentes que se colocam em uma disputa eleitoral e outra, muitíssimo diferente desses dois grupos, são aqueles que desejam sinceramente compreender o que está acontecendo.

O objetivo dos dois primeiros grupos não é ampliar o seu conhecimento sobre o que está acontecendo. O que eles estão disputando é o poder. Ponto. Não que isso não seja justo e desejável, mas poder é um objeto totalmente diferente do conhecimento. Logo, a tensão gerada por esse objetivo é diversa e, por isso, não pode ser confundida com a de um debate intelectual, porém, confunde-se continuamente uma coisa com outra em nosso país. Confusão essa que impera majestosamente nestas terras, diga-se de passagem. Tanto se confunde que é isso que se realiza na maioria das vezes numa sala de aula. Não como indivíduos do primeiro grupo (agentes políticos), mas como os do segundo, enquanto partidários disso ou daquilo e jamais como membros do terceiro, infelizmente.

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Pior! O que os indivíduos acabam não mais entendendo é que uma coisa é você convencer o outro a ser favorável àquilo que você se apresenta como sendo defensor, outra, bem diferente, é você tentar conhecer e compreender alguma coisa que até então não era compreendida nem por você, nem por seu interlocutor, muito menos pelos outros, mas que você e seu interlocutor desejam vivamente compreender melhor.

Não tem como fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Ou você silencia-se e procura realmente conhecer o assunto estudando-o zelosamente, ou então você passa a defender um ponto de vista, fingido conhecê-lo em profundidade para melhor persuadir o outro que conhece de algo que você nunca estudou.

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E não adiante dizer “mamãe barriga me dói” não, que não tem outro remédio. Para se aprender qualquer coisa são necessárias disciplina e paciência e que essas sejam guiadas por um sincero e humilde desejo de conhecer.

Sem o cultivo dessas virtudes a única coisa que se torna possível é essa deformação massiva de indivíduos que de antemão acreditam que estão autorizados a dizer o que bem entendem sobre qualquer coisa sem necessariamente dedicar a elas um pouco da atenção que eles tanto exigem tanto para si.

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Por fim, é mais do que óbvio que qualquer proposta que tenha como intento impor a todos uma mudança radical em relação a esse péssimo costume que é o papagaiar gracioso à brasileira será um imenso fracasso, sem falar que será também, ao seu modo, uma outra manifestação de vaidade encruada.

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Por isso, é urgente que nós procuremos a agir de maneira mais regrada no que se refere ao falatório geral que se traveste com toda pompa de autoridade pseudo-doutoral, pois se realmente desejamos que os outros abandonem essa impostura, é imprescindível que primeiro nós façamos isso.

Para tanto é fundamental que realmente cultivemos em nosso íntimo um desejo sincero e abnegado por aprender; que cultivemos uma sólida honestidade intelectual para podermos lutar diariamente contras essas sorrateiras forças, que são os vícios cognitivos, e através dum bom exemplo, quem sabe, possamos arrastar um e outro para esse caminho.

Também, quem sabe, em médio e longo prazo, possamos ver se desenhando no horizonte de nosso país uma nova paisagem cultural. E isso, somente será possível se começarmos por nós mesmo. Se não formos capazes de reconhecer que há um cretino, um idiota tagarelante em nós, que quer se assenhorar de nossa alma, tudo o que fizermos não passará de apenas outra manifestação fingida de superioridade artificiosa e afetada, por mais que não reconheçamos isso.

Ponto. Fim do cáustico causo.

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