Uma breve meditação sobre a idolatria da conversação vazia como se
fosse um elevado debate
Por Dartagnan da Silva
Zanela
“Saber ouvir quase que é responder.”
(Pierre
de Marivaux)
“Qual o
caminho da gente? Nem para frente nem para trás: só para cima”.
(Guimarães Rosa)
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Boa
parte das discussões travadas no Brasil atual não passam de verdadeiros
desperdícios de energia humana que poderiam ser bem melhor aproveitadas em
outras atividades que agregariam uma maior densidade humana aos indivíduos que
se fiam de maneira tão irascível numa infinidade de bate-bocas vulgares que
apenas reafirmam a sua tolice individual na idiotia coletivamente cultivada.
Não que
as discussões, em si, sejam ruins. Por favor, não me entendam mal. O que é
péssimo em nosso país, hoje, é a idolatria que se edificou em torno do ato de
discutir simplesmente por discutir, como se o armar duma contenda fosse a forma
mais eficaz para se conhecer e compreender alguma coisa.
(1)
E não é
apenas isso não. Na maior parte dos casos, a intenção que se faz presente em
uma discussão, pouco importando qual seja a questão em debate, é muito mais a
de afirmar o que se sente, ou pensa, a respeito disso ou daquilo, do que
realmente compreender o que está sendo discutido com uma maior profundidade.
Resumindo:
o que se procura mesmo, nessas fogueiras de vaidade, sejam colegiais,
acadêmicas ou paroquiais, não é uma procura por algo que tenha um maior grau de
probabilidade, mas sim, persuadir os outros que “sabemos” mais e, é claro,
principalmente persuadir-nos dessa ilusão para melhor convencer os demais de
que nossa fantasia é “real”.
(2)
Isso
pode até ser divertido e provavelmente fará nos sentirmos mais sabidos, porém,
pouquíssimo tutano humano será acumulado em nossa alma simplesmente porque tudo
o que fizermos num ambiente desse será simulação de interesse pelo assunto,
pelo conhecer e nada mais. Num simulacro desse não há espaço para a procura
sincera pelo conhecimento da verdade. Não adiante disfarçar.
(3)
Outra
coisa: ao chamar a atenção para esse problema, não estamos afirmando que não se
deve discutir e que tais empreitadas seriam desnecessárias, não mesmo. O que
intentamos, com essas turvas linhas, é enfatizar que o ato de discutir não tem
toda a importância que é atribuída a ele e, principalmente, gostaríamos de
enfatizar que o valor de uma discussão está fundamentalmente ligado a
finalidade de sua realização, jamais a sua prática em si.
(4)
Dito
isso, vejamos como tal quadro encontra-se desenhado dentro do ambiente
educacional brasileiro. Se formos rememorar ou, como dizem os infantes, puxar
pra ideia, as inúmeras vezes que um professor promoveu uma discussão em sala de
aula, teremos uma amostragem extremamente interessante para refletirmos sobre
esse mau hábito brazuca.
Caso não
queiramos relembrar cenas de nossa vida colegial, permitam-nos propor uma cena
que nos transporte diretamente para esse mundinho a muito, ou a pouco vivido.
O
educador chaga em sala de aula com seus livros de chamada e várias folhas de
papel; fotocópias de um artigo, ou de uma matéria, de revista que versa sobre
algum tema polêmico que, no vernáculo educacional, convencionou-se chamar de
“desafios contemporâneos”; noutras épocas de “temas transversais”. Enfim, são
temas espinhosos que geram amargos dissabores.
O
educador entrega uma cópia para cada um dos presentes. Eles leem; uns com
maior, outros com menor atenção e, é claro, há aqueles que o fazem sem o menor
zelo.
Feito
isso, iniciam-se os trabalhos onde uns se colocam a favor, outros contra o que
era apresentado pela fotocópia. E o que é mais interessante é como e por que
esses juízos são elaborados. Os mais zelosos o fazem tendo em vista a obtenção
de uma boa nota, outros tantos simplesmente para reafirmar o que sentem e
pensam a respeito do assunto e uns defendem isso ou aquilo por mera implicância
com um colega, ou com o próprio professor e, por isso, adota essa ou aquela
posição em relação ao tema e, por fim, há aqueles que simplesmente dizem alhos
ou bugalhos pelo prazer de ver o circo pegar fogo.
Dum modo
geral, todos alteram o tom de sua voz e a têmpera de seu espírito para defender
o seu ponto de vista, independente dos motivos que os levem a fazer isso e,
naturalmente, as diferenças se intensificam, a animosidade floresce e, ao
final, um bom tanto sai do bate-boca colegial ofendido e magoado, outros
sadicamente satisfeitos, mas todos saem do embate com a sensação de que agiram
criticamente, mesmo que não tenham aprendido nada de realmente substancial a
respeito do tema que foi o objeto da discussão.
(5)
Vejam
só: uma atividade como essa, montada nessas bases, não teria como gerar bons
frutos porque, desde o princípio ela estava viciada. Isso mesmo, viciada.
Nas
linhas acima apontamos para os elementos que possivelmente estariam motivando
os sujeitos que estavam a debater, mas e quanto ao educador, qual era a
intenção do distinto indivíduo ao promover algo desse gênero?
Bem,
pode ser porque ele estivesse querendo impor o seu ponto de vista sobre o assunto,
haja vista que a palavra do professor sempre é a palavra final num trem desse
tipo, principalmente quando os ânimos são aquecidos. Ou seja: uma forma sutil e
canalha de doutrinação e manipulação comportamental. Mas não apenas isso! O
sujeito também pode muito bem promover esse tipo de prática em sala de aula por
estar morrendo de preguiça de dar aula ou, simplesmente, se formos dar o
benefício da dúvida, porque ele acredita piamente que essa seja uma forma
refinada e moderna de promover a construção do que ele crê ser o tal do
“pensamento crítico”, apesar de que, com tal prática, ele esteja apenas
sedimentando mais e mais uma impressão sobre o assunto e não levando os alunos
a ter uma mais profunda compreensão sobre ele.
(6)
É claro
que todos afirmam que o objetivo é conhecer melhor o assunto e que uma
discussão serve para esse propósito. Afirma-se isso, mas não é o que, de fato,
ocorre. Isso, na verdade, é uma confusão de termos porque uma discussão só pode
gerar bons frutos quando antes se procura conhecer o assunto que será objeto de
debate e, para conhecê-lo há uma só ferramenta: sentar e estudar o assunto, ler
várias fontes de informação sobre o tema para, depois disso, e somente depois
disso, formar um ponto de vista sobre o que foi estudado e atentamente
meditado. Porém, infelizmente, não é isso o que ocorre nem aqui, muito menos
acolá.
(7)
Outra
coisa: um debate pode ser sim montado em sala de aula com o intento de fomentar
o desenvolvimento da capacidade argumentativa. Aliás, é algo muito importante
para a formação de um indivíduo.
Sobre
esse tipo de prática, há um exemplo que considero muito positivo. Um professor,
certa feita, chegou em sala de aula e, de modo bem descontraído, como quem não
quer nada, antes de começar a ministrar a sua aula, conversou com os alunos a
respeito das “cotas raciais”.
Uns
manifestaram-se, nesse bate-papo informal, contra e, outros tantos, a favor.
Bem, antes de iniciar a sua aula, o professor marcou uma data para eles
debaterem o dito assunto. Tomou o nome daqueles que eram a favor e dos que eram
contrários e determinou o seguinte: os que eram a favor deveriam argumentar
contra as “cotas”; os que eram contrários deveriam encontrar argumentos a
favor.
Batata!
Os alunos não poderiam fingir que conheciam o que desaprovavam. Aliás, deveriam
conhecer muito bem para poder construir argumentos razoáveis. Resumindo: eles
tiveram que estudar sem encontra-se absorvidos por suas paixões. Eles foram
obrigados a conhecer o outro para melhor conhecerem-se e, no frigir dos ovos,
aprenderam mais, muito mais sobre o tema e aumentaram significativamente a sua
capacidade argumentativa que, diga-se de passagem, é uma competência
importantíssima para a vida numa democracia.
(8)
Mas,
infelizmente, não é isso o que ocorre na maioria dos casos. Num quadro como
esse, no da educação na sociedade brasileira atual, a única coisa que pode
germinar, e dar frutos, é a confusão geral que acaba tomando a forma duma
grande assembleia de inconscientes onde todos falam do que sentem e do que
“pensam” a respeito disso ou daquilo, mas ninguém quer ouvir o que o outro tem
a dizer, porque, de fato, na maioria dos casos, ninguém tem nada de relevante a
dizer.
(9)
Outro
claro sinal desse império da confusão são as redes sociais. Não elas em si, mas
sim, a forma como muitos a utilizam, como sendo um canal para debater temas.
Não apenas isso. Podemos afirmar que o culto que se tem em torno da
interatividade entre o produtor de informações e o seu público é algo que chega
ser, no mínimo, esquisito.
Quando
acessamos o Facebook, por exemplo, e vemos um post com uma sequência de cinco
mil comentários temos diante de nossos olhos uma multidão de pessoas que querem
ser ouvidas, mas que, não estão interessadas no que o outro está dizendo. Nem
mesmo no que o autor do post comentado tem a dizer. Tudo é automático, mecânico
e impensado, ao mesmo tempo em que se tem a ilusão pífia de que se está agindo
de maneira autônoma, crítica e, ui, cidadã. O mesmo se pode afirmar dos espaços
destinados aos leitores dum site para que eles comentarem uma matéria.
Resumindo:
aquela mesmíssima impostura cultivada em sala de aula vê-se presente nas redes
sociais que, por sua natureza, são canais formidáveis para disseminação de
informações, de símbolos e, é claro, pra mobilizar um grande contingente de
pessoas para realização de algo, porém, esse não é o canal, digo, não é o
ambiente mais apropriado para o desenvolvimento de um debate que, literalmente,
acaba apenas reproduzindo o comportamento vicioso apontado aqui nestas tristes
linhas.
(10)
Outra
coisa que devemos deixar muitíssimo claro: uma coisa é um debate político que
esteja sendo realizado entre agentes políticos; outra coisa, bem diferente, são
os partidários, militantes e eleitores que apóiam a plataforma desses agentes
que se colocam em uma disputa eleitoral e outra, muitíssimo diferente desses
dois grupos, são aqueles que desejam sinceramente compreender o que está
acontecendo.
O
objetivo dos dois primeiros grupos não é ampliar o seu conhecimento sobre o que
está acontecendo. O que eles estão disputando é o poder. Ponto. Não que isso
não seja justo e desejável, mas poder é um objeto totalmente diferente do
conhecimento. Logo, a tensão gerada por esse objetivo é diversa e, por isso,
não pode ser confundida com a de um debate intelectual, porém, confunde-se
continuamente uma coisa com outra em nosso país. Confusão essa que impera
majestosamente nestas terras, diga-se de passagem. Tanto se confunde que é isso
que se realiza na maioria das vezes numa sala de aula. Não como indivíduos do
primeiro grupo (agentes políticos), mas como os do segundo, enquanto
partidários disso ou daquilo e jamais como membros do terceiro, infelizmente.
(11)
Pior! O
que os indivíduos acabam não mais entendendo é que uma coisa é você convencer o
outro a ser favorável àquilo que você se apresenta como sendo defensor, outra,
bem diferente, é você tentar conhecer e compreender alguma coisa que até então
não era compreendida nem por você, nem por seu interlocutor, muito menos pelos
outros, mas que você e seu interlocutor desejam vivamente compreender melhor.
Não tem
como fazer as duas coisas ao mesmo tempo. Ou você silencia-se e procura
realmente conhecer o assunto estudando-o zelosamente, ou então você passa a
defender um ponto de vista, fingido conhecê-lo em profundidade para melhor
persuadir o outro que conhece de algo que você nunca estudou.
(12)
E não
adiante dizer “mamãe barriga me dói” não, que não tem outro remédio. Para se
aprender qualquer coisa são necessárias disciplina e paciência e que essas
sejam guiadas por um sincero e humilde desejo de conhecer.
Sem o
cultivo dessas virtudes a única coisa que se torna possível é essa deformação
massiva de indivíduos que de antemão acreditam que estão autorizados a dizer o
que bem entendem sobre qualquer coisa sem necessariamente dedicar a elas um
pouco da atenção que eles tanto exigem tanto para si.
(13)
Por fim,
é mais do que óbvio que qualquer proposta que tenha como intento impor a todos
uma mudança radical em relação a esse péssimo costume que é o papagaiar
gracioso à brasileira será um imenso fracasso, sem falar que será também, ao
seu modo, uma outra manifestação de vaidade encruada.
(14)
Por
isso, é urgente que nós procuremos a agir de maneira mais regrada no que se
refere ao falatório geral que se traveste com toda pompa de autoridade
pseudo-doutoral, pois se realmente desejamos que os outros abandonem essa
impostura, é imprescindível que primeiro nós façamos isso.
Para
tanto é fundamental que realmente cultivemos em nosso íntimo um desejo sincero
e abnegado por aprender; que cultivemos uma sólida honestidade intelectual para
podermos lutar diariamente contras essas sorrateiras forças, que são os vícios
cognitivos, e através dum bom exemplo, quem sabe, possamos arrastar um e outro
para esse caminho.
Também,
quem sabe, em médio e longo prazo, possamos ver se desenhando no horizonte de
nosso país uma nova paisagem cultural. E isso, somente será possível se
começarmos por nós mesmo. Se não formos capazes de reconhecer que há um
cretino, um idiota tagarelante em nós, que quer se assenhorar de nossa alma,
tudo o que fizermos não passará de apenas outra manifestação fingida de
superioridade artificiosa e afetada, por mais que não reconheçamos isso.
Ponto.
Fim do cáustico causo.
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